Stay With Me

Stay With Me é tematicamente superlativo — uma obra que exemplifica a potência do BL chinês de forma nunca vista antes

Quando Stay With Me repousa os quadros nas paisagens urbanas da China continental, é um sinal de como a produção avança genuinamente enquanto permanece em seu formato limitado. É como se, de alguma forma, estivéssemos entrando naquele mundo até então desconhecido. Essa sensação, de ver as ruas, as pessoas e a vida se formando entre a montagem das imagens ali captadas, é algo que só quem acompanha o BL chinês consegue sentir.

Todo mundo já conhece o contexto: a mídia BL é estritamente limitada na China continental, ao contrário da província de Taiwan e da região de Hong Kong. Por isso, é possível contar nos dedos de uma mão as obras do gênero que ali se desenvolveram, sendo The Untamed a peça mais importante e, sobretudo, a mais simbólica de todo esse tabuleiro que envolve a censura.

Porém, antes de The Untamed se tornar um clássico por estabelecer justamente uma linguagem conhecida por amarrar a censura e alcançar objetivos inimagináveis à época, outra produção havia cimentado o distúrbio na produção de obras de temática queer na China a partir de meados dos anos 2010: Addicted. Quando estreou em 2016, o BL recebeu uma enxurrada de críticas por reverberar alguns temas como “romance entre menores de idade”, fato citado por autoridades logo após a série ser retirada de circulação. O debate sobre o real motivo da censura continua até hoje, uma vez que a limitação à criação e promoção de live action BL ainda permanece em vigor no país.

Stay With Me
Imagem: Reprodução/GagaOOLala

O alicerce do acerto em Stay With Me

Talvez por isso Stay With Me seja um evento que, para quem acompanha o universo BL, deveria parar o mundo. Considerado quase como um remake de Addicted, o BL chinês ultrapassa os limites de mercado existentes na China continental e avança como um raio de luz sobre o interesse mútuo daqueles que, um dia, esperavam que uma obra tão fantástica como esta saltasse a muralha dos acontecimentos que expôs questões delicadas que vão além do entretenimento.

Mas, antes de entender melhor como Stay With Me difere de outras tentativas de BL na China após a censura, precisamos tomar como exemplo duas obras desse tipo. A primeira é Capture Lover, de 2020, e a segunda é In Your Heart, de 2022. Ambas ficaram conhecidas por serem gravadas em solo chinês, mas exibidas apenas no exterior. Enquanto a primeira é baseada em uma narrativa mais adulta, de escritório e afins, a segunda segue rumo ao colegial, com personagens jovens e um clima de coming-of-age que tinha tudo para dar certo. No entanto, a deficiência técnica em todos os sentidos fez com que o BL passasse longe do ideal. Assim como a produção de 2020.

Stay With Me tem concepção parecida. Mas seu conteúdo, seus elementos técnicos e sua atmosfera são tão mais complexos que acabam chamando a atenção e exercendo um importante papel de novidade. Distante das tramas baseadas em romances históricos, o BL não mede esforços para mostrar suas raízes e menos ainda se preocupa em expor questões fundamentais na construção narrativa existente na localidade em que tudo se passa.

Esqueça os avanços tecnológicos e científicos, ou que a China tirou 800 milhões de pessoas da extrema pobreza: em Stay With Me, acompanhamos a realidade ficcional de um enredo fortemente atrelado ao conflito de classes, à injustiça e ao amor reprimido pela heteronormatividade, e como estes fatores acabam confundindo os sentidos de quem recebe, pela primeira vez na vida, o aval da paixão.

O texto é tematicamente superlativo; um interminável conjunto de situações entrelaçadas que parecem não ser suficientes, e ao invés de enfadonhos, os 24 episódios são exibidos com uma fluidez e um dinamismo que nem mesmo a Coreia do Sul, a Tailândia e o Japão poderiam proporcionar em um BL feito nessas mesmas condições.

Stay With Me
Imagem: Reprodução/GagaOOLala

Caricatura da produção televisiva chinesa

Veja como o drama de Stay With Me é carregado de exageros — encenações teatrais que às vezes acontecem entre eventos amplificadas pelo tom novelístico dos c-dramas —, emprestando diretamente lições de vida de obras clássicas, que, ao mesmo tempo, consegue adaptar tudo ao seu estilo. Como, por exemplo, a filosofia e o arrependimento pelo bem maior de Kung Fu Hustle (2004), quando Wubi (Xubin) liga os pontos e descobre a real situação de Suyu (JiongMin), e se arrepende de tê-lo maltratado inúmeras vezes.

Ele então passa a bajular e até defender Suyu dos criminosos, como fez em uma luta realizada com riqueza de detalhes baseada em técnicas de kung-fu — saltos e golpes exorbitantes. Aliás, essa reviravolta com Wubi exemplifica como esse recurso é constante, de modo que são desenvolvidos diversas vezes ao longo dos episódios, e isso demanda um esforço maior do roteiro para se aproximar cautelosamente do maximalismo da narrativa.

Esse maximalismo que também está presente nos inúmeros personagens secundários. Destaque para o pai de Suyu, Suzhi (Yang Shuo), um homem pobre que persiste diante dos desafios para viver bem com o filho, é quase uma propaganda de um modelo dramático dos c-dramas contemporâneos — incita, nisso tudo, o confucionismo. Aliás, não seria exagero notar a influência do famoso pensador chinês em Stay With Me.

Voltamos à mudança de paradigma de Wubi após descobrir que Suyu era um menino pobre e filho de um trabalhador cuja história o comoveu. É como se ele seguisse um dos principais ensinamentos de Confúcio na cultura chinesa: o compromisso das classes dominantes em agir com benevolência e empatia para promover uma sociedade mais perene e justa. E a empatia realmente o transformou em outra pessoa, mas não foi tão simples assim, foi uma mudança gradativa e definitiva — uma capacidade que é valorizada o tempo todo pela direção.

Stay With Me
Imagem: Reprodução/GagaOOLala

Conclusão

Percebe-se, portanto, que Stay With Me está intensamente ligado ao seu local de origem, assim como Addicted tentou estar. Na época, o BL chamou a atenção pela curiosidade das pessoas em ver uma produção queer centrada nos costumes chineses. Hoje ocorre a mesma sensação, mas desta vez tudo está mais ensolarado na medida do possível. A escola parece um ambiente melhor — com cenas puras de contemplação da bandeira ora pendurada no mastro, ora em cima da lousa da sala de aula. Muitos podem interpretar, por razões políticas, que o BL assume vários riscos.

Todavia, a produção busca manter a naturalidade de seu desenvolvimento. É um trabalho baseado na delicadeza dos detalhes, e isso vale para o romance entre Wubi e Suyu. Algo que poderia ser um simples enemies to lovers, se transforma em uma intensa relação de amizade, companheirismo e paixão. Embora não esteja claro, por motivos óbvios, é possível notar que o casal principal já estava formado há muito tempo. E a cena da praia apenas confirmou o que todos já sabíamos. Essa destreza, de Stay With Me, é uma das maiores qualidades do BL chinês em sua forma mais implícita.

E Stay With Me é uma demonstração perfeita de como esta indústria na China continental tem capacidade e potência para ser tão grande quanto a de qualquer outro país. Emocionante, cheio de reviravoltas e com uma qualidade técnica disruptiva, o BL acerta ao inovar em seu formato e ao expor um romance que vai além da necessidade do toque — é uma série feita para quem ama se entreter e não apenas saciar seus desejos. A materialidade de costumes, vivências e a historicidade cujo cinema precisa ser baseado são grandes aliados de qualquer produção chinesa hoje em dia. E podemos ver tudo isso e muito mais em Stay With Me, que se define como um marco definitivo do BL ao redor do mundo.

Matheus José

Graduando em Letras. Crítico, colunista e redator nos sites Jornal 140, VIUU, Suco de Mangá. Editor e supervisor de textos. Já passou por publicações da BoysLove Hub e China Word Notes.