10DANCE

10DANCE é a obra que redefine os rumos do BL contemporâneo

Talvez, em algum contexto, a preocupação de parte dos fãs com a saída do BL da “bolha” pode até fazer sentido, ainda que essa bolha já não possa ser considerada pequena há bastante tempo. Mas não é esse o ponto aqui. Acredito, na verdade, que a única forma de elevar de maneira significativa o nível das produções atuais da indústria e de tudo que ela sofre é justamente essa expansão. E, de forma ambiciosa, 10DANCE talvez tenha redefinido os moldes do que hoje entendemos como qualidade dentro de um BL.

Anunciado em 2024 e lançado no fim deste ano, o filme original Netflix é uma adaptação do mangá de Sato Ito e é estrelado por Machida Keita, no papel de Sugiki Shinya e Takeuchi Ryoma, como Suzuki Shinya. Keita já é um rosto bastante conhecido, seja entre os fãs de BL por ter protagonizado aquele que se tornou um clássico da indústria, Cherry Magic! (2020), seja pelo público geral, especialmente após o sucesso global de Alice in Borderland (2020). Ryoma não foge muito do estrelismo de seu parceiro, o ator foi protagonista da versão japonesa de Itaewon Class (2022), mas encontra em 10DANCE talvez seu projeto mais impactante até aqui.

10DANCE
Imagem: Reprodução/Netflix

A construção da narrativa em 10DANCE

Na trama, os personagens, que são originalmente dançarinos de estilos distintos, um especializado em danças de salão e o outro em danças latinas, decidem se unir para uma competição que exige domínio de ambos os estilos, cada um com cinco modalidades diferentes (daí o nome 10DANCE). Nesse processo, eles percebem que há algo além da performance: amor, e sentimentos maiores do que o profissional.

O ponto central é que os dois funcionam de maneira tão intrínseca que, desde o início, é possível perceber que um já nutria um desejo pelo outro. Não falo aqui de um desejo sexual, mas humano. O anseio de compreender como alguém se conecta de forma tão absoluta com a dança, e como essa entrega desperta em você a vontade quase dolorosa de alcançar o mesmo tipo de vínculo.

10DANCE
Imagem: Reprodução/Netflix

Em 10DANCE, a direção entende o corpo

Como um bom enemies to lovers, o filme apresenta uma breve rivalidade inicial, que gera a tensão necessária para catapultar toda a carga emocional no decorrer do longa. Esse conflito, no entanto, não se estende além do necessário. Rapidamente, ambos compreendem que o que sentem não é algo a ser controlado, mas vivido, assim como a própria dança.

Nos quesitos técnicos, sem clubismo, 10DANCE é um filme que não erra. A direção e o roteiro, ambos assinados por Otomo Keishi, souberam sugar, mais do que qualquer ordenhadeira já desenvolvida pela indústria audiovisual, todo o potencial técnico e expressivo que Machida Keita e Ryoma Takeuchi poderiam entregar. Keishi, inclusive, já demonstrava sensibilidade ao lidar com narrativas de subtexto homoafetivo em Beneath the Shadow (2020), um slow burn melancólico que, apesar do lançamento discreto, deixou uma marca emocional em quem o assistiu.

10DANCE
Imagem: Reprodução/Netflix

A trilha sonora, que tem como um de seus destaques Bésame Mucho, desperta dois sentimentos muito claros. O primeiro é o de proximidade: há uma conexão indireta com nossas próprias raízes latinas, carregadas de intensidade e emoção. O segundo é o amor, retratado de maneira profundamente sensual. A trilha, como um todo, funciona como suporte para aquele que se revela o grande trunfo da produção.

Diferentemente de muitas produções recentes que anunciam plots promissores em seus trailers, mas acabam recaindo na fórmula já exaustivamente repetida do “se conhecer, se enciumar, brigar e, por fim, namorar”, deixando de lado elementos que poderiam enriquecer a narrativa e que, teoricamente, seriam parte fundamental da trama, 10DANCE consegue equilibrar dois pilares fundamentais: o amor e a dança. Ambos coexistem em pé de igualdade, sem que um seja reduzido a mero pano de fundo do outro.

10DANCE
Imagem: Reprodução/Netflix

Amor e dança como forças indissociáveis

Em determinado momento, Sugiki afirma que, no fim, ele e Suzuki não poderiam se tornar um só. Uma reflexão que parte da lógica tradicional da dança de salão, na qual há um homem que conduz e uma mulher que é conduzida. O que ele ainda não havia compreendido é que essa fala não traduzia o que já sentia. Os dois personagens estavam, naquele ponto, profundamente emaranhados em uma relação intensa e inseparável. Existe, sim, uma tensão entre amor e dança, mas ela se manifesta apenas nos objetivos individuais de cada um em certos momentos da obra. No plano simbólico do BL, essa disputa simplesmente não existe: ambos os temas se sustentam mutuamente e só fazem sentido porque coexistem. O filme jamais coloca um acima do outro. Em uma das cenas mais emblemáticas do filme, Marta, instrutora de Sugiki, explicita aquilo que 10DANCE constrói de forma sensível ao longo de toda a narrativa: a dança não existe sem o amor. É justamente isso que, segundo ela, faltava nele. A técnica, por mais impecável que seja, jamais alcança plenitude quando desvinculada da entrega emocional.

A fotografia, por sua vez, se sustenta por si só. Saber explorar a cidade, suas ambientações e o movimento incessante que ela produz, especialmente à noite, é um mérito reservado a poucos. O corpo de Takeuchi Ryoma, nesse contexto, não é apenas exposto, mas coreografado pela câmera. Esse por si próprio foi desenhado para ser uma obra dentro de outra obra. Abdômen, tatuagens e gestos funcionam como extensão da narrativa e transformam o físico em linguagem estética. Machida Keita, por sua vez, responde com uma atuação igualmente sensível e precisa. Juntos, os dois entregam performances sensuais, conectadas e tecnicamente refinadas.

Embriaguez emocional em movimento

O primeiro beijo do casal surge em um momento de euforia dentro de um trem e se estabelece como uma das cenas mais belas do filme. O uso de motion blur, provavelmente capturado através de uma baixa velocidade de obturador, e câmera lenta, eleva o olhar crítico e sensível de qualquer espectador minimamente atento. Quando foi a última vez que se viu, no audiovisual contemporâneo, uma cena de intimidade construída com tamanho cuidado estético? Chega de mais do mesmo. Tudo aqui foi muito bem pensado. É lindo ver esse aspecto fluido e “derretido” se traduzindo no que eu ousaria chamar de “embriaguez emocional”, como se ambos estivessem se fundindo.

Bom, não é nenhum segredo dizer que, quando a grana entra, os níveis se elevam. É assim que as coisas funcionam, e funcionaram muito bem em 10DANCE. Do uso de tecnologia à execução técnica, do casting à criação artística, tudo reflete um projeto ambicioso. Soma-se a isso a promoção massiva no Japão, algo não visto desde o sucesso de Alice in Borderland, e o resultado é histórico.

10DANCE
Imagem: Reprodução/Netflix

As primeiras vezes que marcam o início das incontáveis

Pela primeira vez, um BL foi dublado em português. Pela primeira vez, um BL figurou no TOP10 da Netflix no Brasil e alcançou o TOP1 no Japão. Pela primeira vez, um BL ocupou o cruzamento de Shibuya com divulgação em larga escala. Pela primeira vez, temos um BL sendo produzido pelo maior streaming do mundo. São muitas “primeiras vezes” que anunciam novos caminhos, dentro e fora do país que é o berço da indústria Boys’ Love.

Ao todo, 10DANCE recebeu dublagem em mais de dez idiomas e legendas em mais de trinta línguas diferentes, um movimento fundamental para que o BL rompesse barreiras linguísticas e culturais e alcançasse o topo dos conteúdos mais assistidos em diversos países. Estamos vendo um BL sendo legitimizado verdadeiramente como um produto global, capaz de dialogar com audiências muito além de seus mercados tradicionais.

10DANCE
Imagem: Reprodução/Netflix

10DANCE rompe com fórmulas desgastadas, sustenta com equilíbrio os dois grandes temas que dão origem à obra, constrói uma tensão deliciosa e redefine o que hoje se entende como qualidade dentro do BL. Para alguns, o final pode caber questionamentos ou o desejo por uma resolução mais imediata, com início, meio e fim claramente delimitados. Mas, em um cenário cultural moldado pela lógica acelerada do TikTok, talvez esse incômodo funcione como um lembrete agridoce: algumas histórias pedem tempo. E tudo indica que a parte dois não deve demorar a chegar às telas.