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Evento sobre BL em universidade tailandesa discute o Brasil e a América Latina

O Brasil e a América Latina estão sendo notados pelos tailandeses e os cursos universitários de idiomas e de áreas de estudos estão de olho nas oportunidades abertas com o sucesso dos BLs entre os latino-americanos.
Evento
Cartaz oficial do evento

Nessa quinta feira, dia 18 de Janeiro de 2024, ocorreu o evento BL tailandês: ganhando os corações dos fãs latino americanos, promovido pelo curso de Estudos Hispânicos e Latino-americanos da Universidade Thammasat, Tailândia. Eu, como professor das disciplinas de Estudos Brasileiros e de Português nesta mesma graduação, tive a oportunidade de prestigiar o evento. Não houve gravação, mas eu vou resumir aqui os principais pontos da discussão entre os convidados e os alunos universitários

Os convidados foram o conhecido roteirista Panuwat “Den” Inthawat, que é co-autor de séries como OnlyFriends e do filme ManSuang (que chegará à Netflix brasileira no mês que vem). Também esteve presente o tradutor e intérprete freelance Poom Rattanasuvannakul (também chamado de Terra por brasileiros) que trabalha fazendo traduções de séries BL do tailandês para o português e que já esteve no Brasil trabalhando como intérprete de fanmeetings.

Alunos assistem ao debate na Universidade Thammasat

O objetivo do evento era discutir sobre a expansão da popularidade do BL tailandês na América Latina (em especial aí no Brasil) e como isso pode ser uma oportunidade de mercado de trabalho para os alunos do nosso curso (que estudam português e espanhol). Entretanto, a discussão foi muito além, com interessantes trocas entre os presentes sobre direitos e representação LGBTQIA+, soft power, racismo e desigualdades sociais. A seguir, vou resumir os principais temas debatidos e depois vocês ganham de brinde três respostas que o Den Panuwat me concedeu numa rápida conversa ao final do evento.

Den Panuwat falando com a plateia.

REPRESENTAÇÃO LGBTQIA+

O roteirista se colocou o tempo todo como um homem gay e falou a partir de seu ponto de vista e de sua experiência enquanto pessoa da comunidade LGBTQIA+. Ele disse que os BLs tem melhorado a forma como representam os indivíduos da comunidade, mas que ainda há desafios. Ele citou o fato de algumas séries mais antigas usarem a famosa frase “Eu não sou gay, gosto apenas de fulano”, o que arrancou gargalhadas do público composto de alunos universitários. Aparentemente muita gente não leva mais esse tipo de roteiro a sério. O público jovem parece estar bastante consciente de que esse personagem do “gay só para uma pessoa” não existe. (Acréscimo meu: É digno de nota, entretanto, que os estudantes participantes do evento não podem servir como parâmetro da Tailândia como um todo. Seria o mesmo que assistir uma palestra na UFRJ e presumir que o público presente representa o Brasil inteiro).

Panuwat também destacou que um dos entraves para uma representação mais fiel da comunidade LGBTQIA+ é a imposição dos donos das empresas de mídia. Ele diz, por exemplo, que é uma exigência das empresas que, ao formar um casal de BL, um ator seja mais masculino e outro seja mais delicado, pois esse estereótipo “vende” mais. Tiveram casos de casais vetados pelas empresas por não corresponderem a essa condição. Panuwat afirmou que mesmo que ele se oponha a esse tipo de imposição, não tem poder para vetar a decisão de pessoas em cargos superiores. Na prática, isso quer dizer que a palavra final não será do escritor da série, mas dos diretores ou, em última instância, dos donos das empresas de mídia. Ele conta que sempre tenta escrever histórias que representem fielmente as vidas de pessoas LGBTQIA+, mas que mudanças podem acontecer por decisões de outros profissionais ligados à produção das séries. Ele conta que o aumento de cenas de sexo nos BLs, por exemplo, é demanda dos executivos das empresas, pois estudos internos apontariam que parte do público se interessaria por histórias com cenas mais picantes. Essas cenas nem sempre estariam nos roteiros originais, mas seriam acrescentadas por ordens vindas de cima. Tiveram casos em que cenas de sexo foram refeitas mais de uma vez por ordens de executivos das emissores, que mandaram regravá-las à revelia dos diretores ou roteiristas.

Poom Rattanasuvannakul, Den Panuwat e a professora do departamento de Estudos Latino-americanos Kratai.

PODER BRANDO

Foi discutido a possibilidade dos BLs se tornarem produto de poder brando (soft power) para a Tailândia. Os convidados, entretanto, destacaram o fato de que os BLs cresceram em popularidade sem a participação do governo e que o apoio deste em favor dos BLs seria difícil, pois o governo não protege a população LGBTQIA+ o suficiente. (Acréscimo meu: Atualmente a Tailândia vive sob um governo que mescla civis e militares, não totalmente democrático). Segundo os convidados, mais do que promover os BLs no exterior, o governo deveria promover primeiro os direitos das pessoas LGBTQIA+. Apoiar os BLs sem apoiar os cidadãos tailandeses que ainda não têm seus direitos garantidos seria, na opinião dos convidados, hipocrisia. Além disso, demonstraria que as autoridades se preocupam mais com o possível lucro adquirido através das séries do que com a dignidade dos seus cidadãos.

Alunos da Universidade Thammasat fazem perguntas aos palestrantes.

RACISMO

Alguns alunos perguntaram aos presentes sobre a escalação dos atores. Há clara preferência por pessoas de pele branca, por tai-chineses ou luk krueng (tailandeses com parcial ascendência ocidental), enquanto atores e atrizes pardos raramente conseguem papéis principais ou de destaque. Panuwat disse que ele concorda com a observação da plateia, mas que isso deve levar tempo para mudar, pois é o próprio público que demanda por atores e atrizes com essas características físicas e que nem ele e nem os diretores têm poder para desafiarem essa condição imposta pelo mercado de atuação. Apenas uma pressão da sociedade como um todo poderia mudar isso, pois os executivos das empresas querem montar casais BLs que sejam facilmente “vendáveis”. E a cor da pele e etnia impactam na capacidade de “venda” do casal.

DESIGUALDADES E HIERARQUIAS

Panuwat contou algo interessante sobre as produções das séries tailandesas. Ele disse que existe uma profunda hierarquia de tratamento durante a filmagem das cenas. O diretor e os principais atores possuem vários privilégios como espaços separados com ar condicionado e comida farta, enquanto os demais podem ter que ficar na rua debaixo do sol e sem direito a comida (precisando ir na rua comprar o almoço com dinheiro do próprio bolso).

O roteirista afirmou que é contra, principalmente, a forma como os trabalhadores da produção são tratados: como se fossem trabalhadores de segunda classe. Ele disse que isso precisa mudar e que ele espera que a sociedade tailandesa diminua o excesso de hierarquização social. (Esse, aliás, é um dos temas de ManSuang).

Foto do Poom no meu escritório na universidade. Tem o Abaporu e o Auto da Compadecida de decoração 🙂

BRASIL E LÍNGUA PORTUGUESA

Alguns alunos perguntaram ao Poom (o tradutor e intérprete) como ele aprendeu português e como conseguiu manter a alta proficiência na língua mesmo depois de anos. Poom contou que fez intercâmbio no Brasil alguns anos atrás e que manteve o contato com a língua através da internet. Ele deu a dica de usar o YouTube para se manter atualizado sobre o Brasil e seu idioma. Poom escuta músicas brasileiras e assiste vídeos de brasileiros regularmente para se manter informado e por dentro do que está acontecendo. Dessa forma ele manteve sua fluência na língua, diferente de alguns amigos que foram ao Brasil como intercambistas na mesma época e que hoje falam pouco português.

Outros alunos perguntaram sobre como ele conseguiu arranjar empregos de tradutor e intérprete em empresas produtoras de BL. Poom afirmou que ficou conhecido no setor graças aos vídeos que produziu no YouTube e à promoção que fez de seu trabalho no Facebook. A partir daí, o boca a boca fez o serviço. Hoje ele é requisitado por empresas do setor interessadas em traduções tailandês-português ou português-tailandês. Ele faz trabalhos como tradutor de legendas, intérprete em fanmeetings e até mesmo como intérprete de turistas brasileiros na Tailândia.

Um aluno perguntou sobre o mercado brasileiro na área de BLs. Poom disse que o grande potencial dos brasileiros se dá pelo fato do público alvo ser potencialmente maior do que o tailandês, tanto do ponto da população quanto da faixa etária. Segundo ele, o público alvo na Tailândia seria de pessoas entre 13 e 35 anos, enquanto no Brasil seria de 13 a 60 anos. Isso faz com que o potencial de novos empregos na área para tailandeses que falam portugues seja promissor. (Vocês leram isso, né galera? Invadam as caixas de comentários com muitos comentários EM PORTUGUÊS. Eles precisam nos notar mais! Não se fechem em grupos e plataformas brasileiros, invadam os espaços tailandeses com nossa língua).

Foto que tirei com o Den Panuwat ao fim do evento.

TRÊS PERGUNTAS

Ao final do evento, eu conversei em particular com o Panuwat e fiz três perguntas que me foram enviadas pela Boys Love Hub.

Confiram a seguir:

ManSuang será lançado globalmente pela Netflix esse ano, qual dica você dá para os fãs internacionais, em especial da América Latina, que irão assistir o filme?

Vocês podem esperar uma grande atuação de Mile e Apo. Os dois entregaram um grande resultado. Vocês também vão poder ver um pouco sobre a grande desigualdade social que impera na Tailândia. Acreditamos que a desigualdade mostrada no filme é a mesma da sociedade tailandesa atual. É um filme com licença poética, não fizemos algo 100% fiel à História. Ao invés disso, usamos o passado para falar da Tailândia atual.

(Acréscimo meu: eu já assisti o filme no cinema e a direção de arte é um primor. Eu não classificaria como BL, mas vale muito a pena pra quem se interessa pela cultura tailandesa).

Qual é a parte mais desafiadora dos treinamentos de atores para você?

A inexperiência, com certeza. Há muitos atores que estream em BLs sem ter feito algum trabalho antes. Eles chegam crus e não sabem nada. Aí você tem duas, três semanas para fazer um jovem rapaz ou adolescente se tornar um ator, pois a gravação já começa logo em seguida. A forma como escolhemos atores na Tailândia não é apropriada. Muitos são escolhidos pelo Instagram e não possuem experiência alguma. E como o mercado é muito competitivo, há sempre novos rostos aparecendo e cada vez menos tempo para o treinamento antes das gravações.

Como foi a decisão de mencionar o Brasil e sua capital (Brasília) na série OnlyFriends?

Nós sabemos que o Brasil é nosso grande apoiador e queríamos fazer uma homenagem ao país e aos fãs. Escolhemos incluir o país no jogo de perguntas e respostas e colocamos uma pergunta que achamos que os brasileiros gostariam. Sabemos que muita gente acha que o Rio é a capital do país, por isso colocamos uma pergunta que, além de quebrar estereótipos, ainda seria respondida facilmente pelos brasileiros mais do que ninguém. Achamos que os brasileiros iriam gostar e ficamos felizes em poder homenagear quem nos apoia.

Eu e os professores do nosso departamento de Estudos Latino-americanos com os dois palestrantes convidados.

É isso, pessoal! Espero que tenham gostado! Quem quiser me seguir no Instagram, segue aí! Um abraço e espero vocês aqui na Tailândia!

Tiago Ferreira

Mora há mais de 4 anos na Tailândia. É professor universitário de Estudos Hispânicos e Latino-americanos da Universidade Thammasat, segunda mais antiga instituição de ensino superior do país, onde leciona sobre língua portuguesa, história e cultura brasileira.