Não há duvidas: como um eco do passado que ressoa no presente, I Feel You Linger In The Air se estabeleceu como um marco no catálogo de obras Boys Love tailandesas. A série se destaca por sua habilidade em retratar o amor nas telas como uma força atemporal e livre das amarras de gênero, encantando o coração de seu público.
Adaptada pela produtora DeeHup a partir do romance Sweet Smell of Love de Violet Rain, a série, dirigida por Tee Bundit (de “Hidden Agenda”) narra a história de um arquiteto desajeitado chamado Jom (Nonkul), que após sofrer um acidente, acorda na Tailândia do início do século XX — o antigo Reino de Siam. Ali, ele encontra Khun Yai (Bright Rapheephon), o primogênito de uma casa de renome, em um período marcado pela constante negociação da soberania da região, em meio às pressões britânicas e francesas.
I Feel You Linger In The Air: viagem através do tempo
A adaptação televisiva do romance não só retrata, mas também faz o telespectador sentir o palpitar do coração da região de Lanna em cada cena. Há um respeito pelas minúcias do contexto histórico que se traduz desde a meticulosa recriação dos detalhes arquitetônicos até os diálogos que refletem a essência linguística e os protocolos sociais daquela era. Os personagens são esculpidos com profundidade, revelando a complexidade moral de uma sociedade em plena metamorfose.
I Feel You Linger In The Air também lança um olhar crítico sobre as dinâmicas de poder, onde os “chefes estrangeiros” simbolizam as complexidades de uma era marcada por concessões e reformas, numa luta para resistir ao colonialismo. A história de Fong Kaew (June Teeratee), uma jovem de Kad Luang que se torna a segunda esposa de Sr. Robert (Attila Arthur), é um exemplo doloroso do entrelaçamento entre a influência britânica no Sudeste Asiático e as camadas mais vulneráveis da sociedade, destacando as injustiças cruéis decorrentes do choque entre diferentes camadas sociais.
Entrelaçados pelo destino
Nonkul, na pele do arquiteto Jom, é o veículo pelo qual a série explora esse choque. Seja sua admiração pelas embarcações, sua performance navega entre a fascinação e a desorientação de um homem deslocado no tempo; desde a estranheza perante os costumes da região de Lanna até resistência em experimentar a culinária local. O ator, portanto, não brilha só nas cenas que provocam ansiedade, mas também nas cenas em que sua ternura está em jogo, com cada movimento esbanjando jovialidade e um charme travesso e angelical.
Por sua vez, Bright Rapheephon, no papel de Khun Yai, encarna o ideal de um galã de novela de época. Seu olhar é doce como o mel, mas intenso como uma flecha. Em uma das cenas mais memoráveis da obra, seu personagem, Khun Yai recita um poema de Sunthorn Phu, comparando a admiração estonteante que sente por seu mordomo Jom à embriaguez do vinho. Seus olhos amendoados expressivos e atentos à tudo, e o movimentar de seus lábios enquanto profere palavras de afeto ao seu querido é como um banquete à quem vê. A atuação de Bright também não deixa a desejar em cenas tristes, onde vemos seus olhos marejados em ação.
O relacionamento sáfico entre Maey (Tian Atcharee) e Ueang Phueng (Alee Auttharinya) é retratado com uma intensidade apaixonada, onde Maey expressa seu afeto sob o manto da noite, e Ueang Phueng encontra consolo nos braços de sua amada em meio à angustia de um casamento turbulento. A dinâmica entre as duas tem um tom agridoce e emotivo, e o carinho que uma tem pela outra transparece até nos gestos mais simples, como no pentear dos cabelos ou no entrelaçar dos dedos.
O que permanece no ar?
A série destaca a coragem de Khun Yai, que, apesar da pressão para manter a imagem familiar, desafia o sistema heteronormativo que estigmatiza a relação entre duas pessoas do mesmo gênero como “anormal” ou “transitório”, “arom” (อารมณ์, que significa “estado de espírito” em tailandês.)
A tradição pesa quando Khun Luang (Surasak Chaiat), o patriarca da casa Palathip, impõe casamentos heteronormativos à ambos os seus filhos, forçando-os a uma “normalidade” da época. O mesmo ocorre com a personagem Nuey (Amadiva), a Kathoey verde, que enfrenta a brutalidade de uma sociedade que a pune por sua autenticidade, e James (Kim Goodburn), cuja história é sufocada antes mesmo de florescer, simbolizando as muitas vozes silenciadas pela hostilidade daqueles tempos.
A história de I Feel You Linger In The Air, apesar de focar no relacionamento romântico entre os dois protagonistas, dá voz às histórias amargas de seus personagens secundários, cada um carregando uma cruz de injustiças sociais. Jom, ao atravessar o véu do tempo, não apenas transita entre séculos; ele navega por um emaranhado de almas esquecidas, cujas histórias de marginalização e gritos por direitos humanos básicos continuam a ecoar através das décadas, mostrando que, apesar dos anos, certas sombras ainda ofuscam a luz da diversidade.
Quebra de expectativas de gênero
I Feel You Linger In The Air traz algo quase inédito ao gênero Boys Love: personagens femininas fortes e complexas. Em um cenário onde figuras masculinas frequentemente ocupam o centro das atenções, personagens como Ueang Phueng são recebidas pelo público com entusiasmo. Suas ambições e sonhos colidem com as expectativas sociais de seu gênero: ela quer estudo e participação política assim como o seu pai, mas é confrontada com as normas restritivas que a confinam ao espaço doméstico.
Em um dos momentos marcantes da série, testemunhamos Khun Khaekai (Savitree Samipak), a matriarca, desafiando as decisões de seu marido, Khun Luang. Com uma rebeldia inesperada, ela toma um gole de bebida alcoólica — um ato que, embora simples, carrega um peso simbólico intenso. Ela, que tradicionalmente permanece à sombra de figuras masculinas dominantes, aqui se posiciona com uma ferocidade que desafia as convenções, rompendo as correntes da tradição. Este gesto se torna a “gota d’água” que perturba a superfície calma do sistema estagnado na Tailândia do século XX, anunciando uma era de transformação nas dinâmicas de gênero e poder que tecem a narrativa.
O legado de “I Feel You Linger In The Air”
I Feel You Linger In The Air é a prova de que o BL tailandês é uma potência artística que pode ir além dos clichês convencionais – convidando o público global a refletir sobre como amor e a identidade são constantes universais que sobrevivem e prosperam apesar das mudanças de poder, política e progresso. Esta série, portanto, é uma carta de amor não só à história queer tailandesa, mas à liberdade de expressão e aos ecos de rebeldia em uma tempos de turbulência.
Com uma execução refinada que se conecta à questões atuais, graciosidade poética de cada cena, canções memoráveis em sua trilha sonora e uma narrativa que flui sem falhas do começo ao fim, esta série deixa um aroma duradouro que tem seu lugar garantido nas gerações futuras. I Feel You Linger In The Air é mais do que uma série BL – é a celebração do amor e diversidade transcendendo a estrutura do espaço-tempo, o novelão queer que todos merecemos.
Referências
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I Feel You Linger In The Air: Dirigido por Tee Bandit, Produtora: Dee Hup House, 2023.