Kathoey? O que é?
Em um mundo cada vez mais globalizado, a compreensão da diversidade de identidades de gênero tornou-se fundamental para promover a inclusão e o respeito. No entanto, muitas vezes, nossa visão de identidade de gênero, mesmo dentro da comunidade LGBTQIA+ é moldada pelas normas eurocentradas, o que pode nos levar a mal-entendidos e rótulos inadequados quando exploramos outras culturas. É nesse contexto que pretendo explorar com você, leitor, a identidade conhecida como Kathoey e a origem sociocultural dessa concepção de gênero.
Ao pesquisar sobre a atriz e figura popular Jennie Panhan, famosa por suas participações em programas da emissora tailandesa GMMTV, e séries BL, você pode se deparar com vários tweets a rotulando erroneamente como “mulher trans”. Contudo, é crucial compreender que nem sempre uma expressão de gênero dissonante atribui a pessoa ao gênero binário. De fato, em várias culturas mundo a fora, temos a existência de várias identidades de gênero que fogem ao binarismo como two-spirit dos povos indígenas norte-americanos, hijira na Índia e mais próximo de nós na América Latina, as travestis.
Em tailandês, ‘kathoey’ é um termo geral que abrange todas as categorias de terceiro gênero, teoricamente referindo-se a todas as apresentações de gênero e sexualidades não normativas, além dos padrões heterossexuais masculino e feminino. No entanto, na prática, ‘kathoey’ raramente se refere a indivíduos com corpos femininos, independentemente de sua expressão de gênero. Na cosmopolita Bangkok, entre as classes médias, ‘kathoey’ se refere apenas a pessoas transgênero masculinas para femininas – ou seja, mulheres transgênero.
KANG, D. B. Kathoey “In Trend”: Emergent Genderscapes, National Anxieties and the Re-Signification of Male-Bodied Effeminacy in Thailand. Asian Studies Review, v. 36, p. 475–494, 2012.
E na Tailândia, não seria diferente, pois temos Kathoey, um gênero não-binário alinhado ao feminino, que comporta diversas expressões, sendo considerada como um phet thi-sam – terceira categoria de gênero, não podendo ser traduzido diretamente em outras culturas ou termos ocidentais, já que estes não capturam a riqueza de sua identidade e o papel na sociedade desse país do sudeste asiático.
Gênero e Religião
De acordo com dados de 2015, cerca de 93.4% da população tailandesa é praticante do budismo theravada, tornando o país a morada da segunda maior taxa de população budista no mundo, atrás apenas da China, com seus 64 milhões de budistas. No cerne do budismo theravada reside a crença na reencarnação e a busca pela iluminação espiritual. Essa crença abre espaço para uma compreensão mais abrangente da existência e da identidade, sugerindo que as almas podem renascer em diferentes formas de vida, incluindo diversas identidades de gênero, ao longo de várias vidas, entre elas a identidade Kathoey.
A relação entre Kathoey e budismo torna-se particularmente interessante à medida que exploramos as implicações espirituais dessa identidade. A filosofia do karma, tão essencial na fé budista, sustenta que as ações de uma pessoa em vidas passadas, influenciam profundamente sua existência presente. Isso inclui aspectos como identidade de gênero, o que infelizmente faz a população em geral crer que “nascer Kathoey” seria uma espécie de pagamento cármico, uma punição por pecados em vidas passadas ou demonstração de uma suposta falta de capacidade para controlar impulsos e tendências sexuais.
Kathoey na mídia e o poder da visibilidade
Seja em desfiles de moda, programas de televisão ou em outros meios de comunicação, Kathoey desfrutam de uma presença marcante na mídia tailandesa. A Tailândia é, aliás, o lar do renomado Miss Tiffany, o maior concurso de beleza dedicado exclusivamente a pessoas transgênero em todo o mundo. A cada ano, o concurso coroa uma vencedora que se torna um ícone de beleza e representatividade para a comunidade Kathoey.
Na televisão tailandesa, também é possível encontrar Kathoey em programas variados, desde talk shows até séries de entretenimento, como na própria GMMTV, uma das principais produtoras de conteúdo televisivo na Tailândia, famosa por suas produções BL, como 2gether The Series (2020), Bad Buddy (2022), Sotus (2016) e Dark Blue Kiss (2019).
I Feel You Linger In The Air: o corpo Kathoey em cena
Recentemente, no sexto episódio do drama BL tailandês I Feel You Linger In The Air (2023), uma cena marcante serviu como uma poderosa ilustração das nuances da identidade Kathoey e como ela é percebida na sociedade tailandesa. Neste episódio da série, ambientada na Tailândia no século XX, os personagens James (interpretado por Kim Goodburn) e Jom (interpretado por “Nonkul” Chanon Santinatornkul) estão sentados em um bar secreto com uma atmosfera acolhedora, onde os desejos e identidades podem ser livremente expressos.
Nesse cenário, uma figura misteriosa, Nuey, conhecida como a “Kathoey Verde”, entra no bar e chama a atenção de todos com sua presença marcante. Jom diz que ela aparenta estar feliz.
James, então, compartilha com Jom a história de Nuey, ressaltando as numerosas discriminações que ela enfrentou ao longo de sua jornada para alcançar o lugar onde se encontra. No entanto, é precisamente naquelas sombras acolhedoras do bar que Nuey tem a liberdade de ser quem realmente é. Seu corpo, que desafia as normas de gênero, dança entre as mesas do local, provocando fascínio e admiração, em contraste com a repulsa que enfrentou em sua cidade natal.
Cenas como essa enfatizam a importância da representação na mídia na construção da compreensão e aceitação de identidades de gênero não convencionais. No entanto, também levanta algumas questões: será que representação, por mais bela que seja, é suficiente para garantir a igualdade? Ao transitar do cenário do século XX, retratado na ficção, para a realidade do século XXI, é necessário refletir o que efetivamente mudou. Será que ainda é imperativo que alguns indivíduos vivam nas sombras, ocultando suas identidades, para preservar sua própria existência?
Representação ≠ Igualdade
Embora seja encorajador ver uma maior representação de Kathoey na mídia tailandesa, é igualmente importante ressaltar que a representação por si só não garante direitos igualitários. Embora a visibilidade aumente, ainda existem desafios significativos a serem enfrentados em relação aos direitos e à igualdade dessa parcela da população tailandesa, tendo em vista que a constituição do país em nenhum momento cita orientação sexual e identidade de gênero, o que representa uma lacuna significativa na proteção legal, além de contribuir para a desumanização de pessoas LGBTQIA+.
Pessoas trans evitam e não têm um acesso adequado à saúde devido ao estigma. Frequentemente, são discriminadas e verbalmente violadas.
Kittinun Daramadhaj, presidente da Associação Rainbow Sky da Tailândia.
Adicionalmente, mesmo com a facilidade para a realização de cirurgias e procedimentos de afirmação de gênero, pessoas trans ainda enfrentam discriminação e obstáculos no acesso à saúde, quando comparadas a pessoas cisgênero. Essas experiências negativas incluem o uso de pronomes com os quais não se identificam, fofocas, rótulos, ridicularização, questionamentos irrelevantes sobre saúde e outras situações constrangedoras. Como resultado, muitas pessoas da comunidade transgênero optam por comprar hormônios e se medicar sem consulta médica, um grande risco devido ao uso inadequado e possíveis erros de dosagem.
Como nem tudo que reluz é ouro, é importante salientar que a representação de Kathoey na mídia nem sempre é positiva ou precisa. Em muitos programas de televisão e séries, elas são caricaturadas e estereotipadas, o que, lamentavelmente, contribui para perpetuar ideias distorcidas sobre seus estilos de vida. Isso resulta em marginalização e as coloca no papel de alívio cômico, o que, em última análise, constitui um retrocesso significativo na luta contra estereótipos prejudiciais, um desafio que perdura desde a epidemia mundial de AIDS nos anos 80.
Portanto, apesar de desempenhar um papel importante na promoção da diversidade, é crucial que a representação seja sensível, respeitosa e fiel. Um critério importante para avaliar essa representação é o Teste Vito Russo, nomeado em homenagem ao ativista LGBTQIA+ Vito Russo. Esse teste é uma ferramenta valiosa, não apenas para diretores e roteiristas, mas também a todos os telespectadores, assegurando que personagens queer sejam retratados de forma completa e significativa.
De acordo com o Teste Vito Russo, um filme, série ou programa de televisão deve apresentar um personagem identificável como parte da comunidade LGBTQIA+. No entanto, essa identificação não deve definir inteiramente o personagem, que precisa ser multifacetado, com uma história e características que vão além de sua identidade de gênero ou sexualidade, tendo um impacto significativo na trama. Quantas vezes você já viu uma Kathoey sendo representada de forma positiva e relevante em uma produção BL ou em um Lakorn?
Conclusão: celebrando a diversidade
Avanços na compreensão e representação de pessoas transgênero na mídia são passos importantes em direção a uma sociedade mais inclusiva e respeitosa. No entanto, não podemos esquecer que são, acima de tudo, apenas passos. Uma caminhada se faz com vários passos e é necessário que esses avanços se traduzam em igualdade de direitos e oportunidades para todas as pessoas, independentemente de sua identidade e expressão de gênero. É algo que requer mais do que representação — exige ação.
A comunidade de fãs de obras Boys Love, que tem desempenhado um papel significativo na visibilidade de personagens queer na grande mídia, devem abraçar não apenas os personagens fictícios, mas também a comunidade LGBTQIA+ como um todo. Somente quando reconhecemos e valorizamos a singularidade de cada pessoa é que podemos verdadeiramente caminhar para uma sociedade mais justa e inclusiva. Que nossos gritos por igualdade, respeito e liberdade sexual não sejam esquecidos, e que continuemos avançando rumo a um futuro em que não apenas seremos respeitados, mas celebrados, pois a verdadeira riqueza de uma sociedade reside em sua diversidade.
Referências
TOTMAN, Richard. The Third Sex: Kathoey, Thailand’s Ladyboys. Souvenir Press, 2004.
JACKSON, Peter A. First Queer Voices from Thailand: Uncle Go’s Advice Columns for Gays, Lesbians and Kathoeys. Hong Kong University Press, 2016.
COSTA, Leerar. Male Bodies, Women’s Souls: Personal Narratives of Thailand’s Transgendered Youth. Routledge, 2013.
KANG, D. B. Kathoey “In Trend”: Emergent Genderscapes, National Anxieties and the Re-Signification of Male-Bodied Effeminacy in Thailand. Asian Studies Review, v. 36, p. 475–494, 2012.
RUSSO, Vito. O Armário de Celuloides: Homossexualidade nos Filmes. It Books, 1987.
ILO. Gender Identity and Sexual Orientation in Thailand. 2015.
Thai PBS World. Barriers to transgender people accessing Thailand’s healthcare system. 2023.
UNDP. BEING LGBT IN ASIA: THAILAND COUNTRY REPORT A Participatory Review and Analysis of the Legal and Social Environment for Lesbian, Gay, Bisexual and Transgender (LGBT) Persons and Civil Society. 2014.
I Feel You Linger In The Air: Episódio 6, dirigido por Tee Bandit, Produtora: Dee Hup House, 2023